Era a noite antes do Natal, e no Espaço não se via nenhum VOID malvado.
As meias foram penduradas com cuidado junto à janela,
pois Santa Klaws logo chegaria.
Eu fiquei na minha cama, sonhando com guloseimas e presentes.
Quando ouvi um barulho, corri direto para a janela, então eu pude ver.
Rápido como um raio, reluzindo com o brilho vermelho das renas, vinha o trenó de Klaws. Um rastro de neve branca e brilhante formava-se no ar.
As renas vasculhavam o céu com seus narizes disparando raios laser, à busca de possíveis inimigos, e suas galhadas tinhas pontas afiadas como diamante. Qualquer monstro de outro planeta que aparecesse, seria cortado em fatias e pulverizado.
Um barulho no teto, e eu voltei direto para minha cama.
Pela janela, Santa Klaws entrou com um salto. Seu casaco era fofo e vermelho, invulnerável. Ele balançou seus braços fortes, e eu pude ver aquelas garras afiadas, com as quais ele nos protegia dos malvados e imundos extraterrestres.
Fingi que estava dormindo, mas ele olhou para mim e deu uma piscada.
“Você foi um bom menino?” — disse ele, com sua voz trovejante.
“Se não foi...” — o medo quase congelou minha alma.
Ele soltou uma gargalhada, e após encher minhas meias com presentes, deu uma pirueta, e saltou pela janela.
Não tive coragem de abrir mais os olhos, mas continuei ouvindo o barulho das renas, e aquelas sonoras gargalhadas do Bom Velhinho Matador de Aliens.
À medida que eu caía no sono, ouvi uma música trazida pelo vento gelado:
“Um Feliz Natal para todos!”
Assim que Brasil Kosma terminou de contar a mesma história que era contada geração após geração em sua família, desligou a holotela e olhou satisfeito para seus filhos, Brasil Júnior, Kola e Tevãu, que ouviram a tudo muito interessados.
— Onde Santa Klaws mora, papai? — perguntou Kola, a filha caçula.
Brasil sentiu-se orgulho com o interessa da menina, e pôs-se a repetir mecanicamente o que costumava ouvir de seu finado pai, Tóvãu Kosma:
— Ele mora no Norte Branco, onde a neve cobre as florestas durante o ano inteiro. Lá os pinheiros brilham como árvores de natal, e os VOIDs convertidos trabalham nas fábricas de brinquedos e de doces para pagar pelos seus crimes.
Os olhos das crianças pareciam brilhar a cada palavra. Faltavam apenas dois dias para a tão esperada véspera de Natal, e a excitação das crianças ficava cada vez maior. Brasil beijou um por um, e levou-os até a cama larga de madeira onde todos dormiam juntos. Ligou os ventiladores, apagou a luz e foi sozinho para a varanda de sua humilde casa.
Brasil lançou um olhar perdido no horizonte. No céu escuro as estrelas brilhavam como jóias, e tudo indicava mais um dia seguinte sem chuva. O homem de pele morena e cabelos vermelhos era descendente dos primeiro colonos que chegaram em 2070 ao Planeta Thoth, uma das mais antigas colônias terrestres, cujo clima quente e árido era por demais hostil. No entanto naquela época distante em que os mundos disponíveis para a colonização eram bem poucos, os humanos não podiam se dar ao luxo de desprezar condições climáticas adversas. Conseguir colonos para tais planetas inóspitos era sempre difícil, mas iludidos por promessas de casa própria e colheitas abundantes, milhares de terráqueos afluíram às naves colonizadoras. Entre estes desesperados estavam os longínquos ancestrais de Brasil Kosmas.
A vida da família Kosmas era árdua, e mesmo com a toda a tecnologia de Terraformação funcionando a plena carga, os custos ainda eram altos para a população thothiana. As cidades maiores e mais antigas cresceram nas poucas regiões mais férteis das altas latitudes, onde concentraram-se os mais ricos do planeta. A grande maioria da população tinha que se contentar com condições de pobreza e miséria nos rincões mais inóspitos, onde trabalhavam na mineração e no plantio de vegetais nativos. A mineração, como em todos os planetas humanos, era feita por autômatos, mas uma série de conflitos e revoltas que estouraram no século passado levou à restauração da mão-de-obra humana, como uma forma de absorver a legião de migrantes e refugiados.
Brasil cuidava de uma pequena horta onde plantava tubérculos-prateados, inhames-thothianos e espinafre-gigante. O transporte ficava por conta de seu único camelo, Sinho, velho mais ainda robusto. Brasil tivera que gastar muito para conseguir os brinquedos de seus filhos. Não ganhar presentes durante o Natal poderia representar um trauma profundo para a mente infantil, e o agricultor sabia disso. Viúvo e pai de cinco filhos, a economia da família era complementada pelos rendimentos enviados pela filha mais velha, Lorá, mandada no anterior pelo pai para Neopolis, onde se matriculou na filial thothiana da Top Model High School, a venerada TMHS.
Há meses que Brasil não tinha mais notícias de sua querida Lorá, mas ela continuava mandando-lhe mensalmente uma modesta quantia em dinheiro. Devia vir do trabalho como modelo iniciante; com sorte — pensava o horticultor — ela seria selecionada para integrar a invejada Raça das MOD, mulheres novas e lindas cujo padrão de beleza era algo tão perfeito, que não podia ser atingido sem uma série de operações plásticas e a ação permanente de substâncias eugenomórficas. Tudo isso era muito caro, mas uma vez conseguindo seu objetivo, Lorá Kosma poderia melhorar em muito a vida de sua família. Com sorte, quem sabe até a pequena Kola poderia também ser mandada para a TMHS.
O lavrador vasculhou a mesinha da varanda à procura de um copo, e despejou todo o conteúdo de uma garrafa de águaprata, um forte aguardente feito com o sumo fermentado dos tubérculos-prateados. Não pôde deixar de perceber que as luzes na casa de seus vizinhos ainda estavam acesas. Cuspiu no chão, maldizendo a invejosa família dos Lacroix, que moravam a uns trezentos metros de distância. Ele tinha certeza que era Madlena Lacroix quem estava inventando as fofocas sobre sua filha: de que ela já havia sido expulsa da TMHS e que provavelmente acabara em algum Lupanar. Lupanar era o nome dado aos prostíbulos “ao vivo”. Numa época em que a ciberpornografia era uma das atividades mais lucrativas, a procura maior era por sexo virtual com criaturas 3D que se tornavam autênticas celebridades, as “BRAND”. A busca pela “Carne Humana”, como era chamada pejorativamente a prostituição de pessoas “reais”, era vista como uma perversão para uma minoria de degenerados e fracassados. Pagava-se pouco e as condições eram repugnantes.
Brasil Kosmas atribuía as mentiras de Madlena à inveja que sentia por sua filha Kilia ter sido derrotada por Lorá durante o concurso que a THMS organizou no ano passado. Ele sabia que sua filha nasceu para brilhar e vencer, e que estava destinada ao sucesso.
Seus filhos já deviam estar dormindo, e o pai orgulhoso voltou ao seu quarto para conferir os ganhos da noite passada com a Feira Agrícola. Ainda faltava dinheiro para comprar o presente de Tevãu, e isto estava tirando-lhe o sono. Brasil não acreditava mais em Santa Klaws, e intimamente sentia um ódio secreto pelo “Bom Velhinho Matador de Aliens”. Seu desejo era contar a verdade a seus filhos, mas sabia que não teria coragem para enfrentar a desilusão deles.
Faltavam dois dias para a véspera de Natal.
QUASE VÉSPERA DE NATAL
Texto: Simoes Lopes