
No planeta N’umya o céu é avermelhado, e volumosas nuvens amarelas escondem as altas montanhas. No vale de Turaz, onde outrora florescera uma densa floresta, povoada pelos grandes klunais, os ágeis ikaa e os graciosos urtha, hoje só resta uma imensa cratera ainda levemente fumegante. As dunas de areia radiativa são fustigadas pelo vento pestilento, e nenhuma forma de vida é vista num raio de muitos quilômetros.
Muito longe daquele lugar nefasto, depois das sinuosas curvas do outrora pujante rio Kan’ul, dois solitários n’umyanos caminham a passos lentos e dolorosos. Cobertos por uma grossa pele verde-oliva, os nativos deste planeta são baixos e atarracados. Possuem um bico córneo semelhante ao de uma tartaruga, e seus olhos são alongados, com pupilas vermelhas luminescentes. As mãos possuem seis dedos, e uma espécie de crina lanosa cobre seu dorso musculoso. O mais alto dos dois seres produzia sons ríspidos (provavelmente uma espécie de tosse) e sua pele estava coberta de feridas fétidas. Seu companheiro, de tamanho menor, tinha uma grande cicatriz na cabeça, e seu braço direito estava reduzido a um toco. Com sua única mão, carregava um tubérculo esverdeado.
—Kauran, meu filho — dizia o n’umyano mais alto — nosso mundo está morrendo. Quando eu era jovem, há muitos ciclos atrás, tudo era diferente. Os animais abundavam, florestas enormes cobriam o horizonte. Nós tínhamos erradicado quase todas as doenças e consertado muitas das falhas em nosso passado turbulento. Vivíamos em igualdade e liberdade.
—Os demônios chegaram vindos do céu, com suas naves enormes, brilhantes como a prata. Dissimulados e mentirosos, fingiram-se de amigos. Foram acolhidos por nós e seu comércio nos trazia produtos interessantes que foram de nosso agrado. Mas à medida que o tempo passou, eles foram revelando suas verdadeiras intenções. Subornaram nossos líderes e passaram a querer controlar nosso mundo. Sua tecnologia e seus produtos foram recebidos com muita alegria por alguns de nós. Mas fomos incapazes de perceber que estávamos tornando-nos dependentes da ajuda alienígena, e acabamos destruindo nosso próprio conforto só para agradar aos demônios. Em nosso torpor coletivo, destruímos a harmonia que reinava em nossas sociedades.
O discurso foi interrompido por mais alguns sons abafados, semelhantes a um engasgo. Tsum respirava como dificuldade. Fez mais um esforço e continuou.
—Foi quando alguns de nós tomaram consciência do que estava acontecendo. Lutamos contra a opressão e expulsamos os traidores, aqueles malditos lacaios dos demônios alienígenas.
Mas nosso algozes não aceitaram a vontade dos libertadores de N’umya: atacaram nosso planeta com toda a potência de suas espaçonaves. Nosso planeta era pacífico, e já havia abandonado a cultura bélica há tantos séculos que ficamos indefesos. Eles despejaram bombas de fusão em nossas cidades, destruíram nossas terras e ocuparam nosso mundo. Hoje não passamos de alguns mortos-vivos esperando pela morte certa.
Kauran sabia que seu pai estava à beira da morte, e era por isso que ele não se importava de ouvi-lo repetir a mesma ladainha todas as vezes. Relembrar o trágico passado de seu povo fazia o cansado n’umyano esquecer do próprio sofrimento.
O pequeno Kauran se assusta com um barulho vindo na direção dos rochedos. Três enormes silhuetas vão ganhando contornos mais nítidos à medida que se aproximam. Com cerca de três metros de altura, seus corpos são cobertos por uma espécie de carapaça quitinosa azul-metálico. Quatro olhos multifacetados de cor amarela assentam-se sobre um crânio parecido com o de um cão. Usam como traje um envoltório transparente semelhante a plástico. Carregam aparelhos tubulares, provavelmente armas. Os n’umyanos encolheram-se de medo.
Tsum agarrou a seu filho, esperando pelo fim tão esperado de sua miserável vida. Um zumbido metálico muito breve interrompe o silêncio, e eles começaram a escutar os estranhos falando em sua própria língua...
—Não tenham medo, N’umyanos! Não somos aliados dos demônios. Viemos do planeta Aldhor, o quinto da estrela Zynä. Nós também sofremos com a ameaça dos invasores do espaço. Nada pode se comparar à crueldade destes monstros. Nós quisemos reunir vários dos povos agredidos por eles, mas nossa frota foi aniquilada. Somos os únicos sobreviventes de uma pequena nave de salvamento que caiu em seu planeta. Tentamos derrotá-los com armas, mas não adianta, pois eles são os mestres da guerra. Somos companheiros em sofrimento. Não resta nada a fazer...
– Então fiquem conosco. Vamos esperar pela morte juntos.
Um dos aldhoritas aproxima-se agitado : — Deixem-me falar com eles! Quero que eles compreendam a causa de nosso fim !
Seus companheiros o seguram, tentando impedi-lo de falar:
— Ele está delirando de novo. Aplique o resto de sedativo — grita um deles.
—Não, por favor... —pede o n’umyano—, deixem-no falar. Não há mais sanidade em nosso mundo agora ... que todos façam o que quiserem.
O aldhorita desvencilha-se de seus
pares e começa a falar, num tom quase mecânico : — Sou Hat-Kon, e cresci
ouvindo as histórias de minha velha bisavó, que como membro do Conselho
Planetário de Aldhor circulava pelos bastidores da Comunidade Transplanetária.
Foi no tempo dela em que a Comunidade decidiu acolher do mundo natal dos
demônios, o terceiro planeta de uma estrela amarela. Permitiram a eles um
avanço tecnológico sem o necessário amadurecimento de suas consciências, e
assim plantaram a semente de seu próprio desastre.
Os n’umyanos escutaram tudo em
silêncio, sem conseguir captar tudo com clareza. O aldhorita não parava de
falar.
— As primeiras gerações prosperaram e fundaram
uma próspera rede de colônias interestelares, rapidamente absorvendo os
conhecimentos de outros povos da Comunidade. Mas então sua crueldade natural
tornou a se manifestar e eles se voltaram contra si mesmos e seus mundos
coloniais. Em pouco tempo restauraram sistemas primitivos de ideias que outros
mundos deixaram para trás. Orgulham-se
de ter escravizado seus semelhantes e assassinado seus heróis. Para eles não
existem sociedades, apenas indivíduos cultivando uma obsessão egoísta de poder.
Um novo monoteísmo emergiu, unificando a espécie pela veneração de um deus
supremo cuja mão invisível ajuda os fortes e esmaga os fracos – O Indivíduo
Supremo – a personificação sadomasoquista de um Senhor que os protege de todos, mas não de si mesmos. O Universo é deles por direito divino. Todos somos
intrusos, destinados ao suplício eterno tendo que escolher entre a escravidão e
o desaparecimento.
Hat-Kon continua o discurso com os
olhos fixos no céu. Um ponto de luz púrpura atravessa o céu lentamente, sumindo
bem atrás do Monte Kalk. No intervalo
equivalente a dezoito centésimos de segundo – o relógio de um aldhorita marca,
mas sem ninguém para registrar - todos
desaparecem no interior de um novo cogumelo atômico...
Muitos quilômetros acima, pairando
acima da atmosfera, um demônio comemora
mais um triunfo. Séculos atrás, quando seus povos tinham muitas línguas, sua
ciência havia proposto uma palavra única para defini-los. Homo sapiens. Significava “sábio”. Agora, em incontáveis planetas e
satélites habitados por espécies menos afortunadas, esta palavra é traduzida
como “Demônio”. Não aqueles demônios das lendas ancestrais e das fantasias
literárias, mas demônios reais que se espalham pela galáxia.
2 comentários:
Olá, Simões Lopes!
Li o primeiro capítulo de Demônios do Espaço e gostei bastante. Vou continuar acompanhando. Os demônios me lembram os europeus chegando na América!
Achei muita legal as intervenções artísticas, está muito boa, facilita a imersão na história, parabéns!
Quando os humanos não são os heróis
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