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terça-feira, 6 de maio de 2008

9. TEMPO DE ESPERA

As luzes de sinalização no Hangar 18 do Cruzador Espacial Tokyo estavam pulsando com o brilho verde característico da sinalização de decolagem de uma das mononaves estacionadas.
Deflesh Ramos passou um pente no topete gomalinado, e ajeitou os cabelos louros-avermelhados com cuidado. O andar preguiçoso realçava ainda mais seus 2,10 m de altura, e ele soltou uma série de palavrões quando ouviu pelo fone que o reparo no campo de força da Tokyo já estava finalizado, mas que as decolagens ainda deveriam esperar uma autorização posterior.
O tempo de espera até que não chegava a ser incomum, mas Deflesh mostrava sintomas de uma impaciência exagerada. Como todo aqueles da Raça BOLD, este soldado, nascido na colônia terrana de Donar, era condicionado desde a mais tenra idade a ser ilimitadamente violento e caninamente obediente a seus superiores. Para evitar quaisquer problemas colaterais, todos os membros da casta guerreira eram obrigados ao uso permanente de drogas tranqüilizantes nos momentos em que não estavam lutando.
O militar donarense só pensava em retornar para sua mononave, a Silent Locust. Uma vez embarcado, o tédio iria embora, e ele estaria a caminho do distante sistema estelar de Galyssar. Lá, orbitando um dos satélites do Planeta Therasia, estava posicionado o enorme Couraçado Peace, prestes a partir em missão preventiva para o Planeta Aldhor. Rebeldes aldhoritas estavam agindo em planetas da Esfera Neutra, fomentando dissidências e ameaçando a paz do Mercado Pan-Solar.
A distância entre Thoth, o planeta colonial que a nave Tokyo orbitava neste momento, e o distante Aldhor era de incríveis 1.550 anos-luz, mas graças ao portal de Pathmos, a viagem não demoraria mais que alguns segundos. Pathmos era um dos raros Objetos Espaciais de Wermund que haviam sido descobertos na Via Láctea. Até o presente momento, nenhum cosmólogo, terrestre ou extraterrestre, havia conseguido explicar o funcionamento e a natureza de tais passagens interdimensionais.
Por um simples acaso histórico, os humanos foram os primeiros a descobrir e catalogar esta rara espécie de objeto cósmico, no ano de 2078, quando a nave exploradora George Gamow II detectou perturbações gravitacionais a menos de um ano-luz do Sistema Solar, concentradas numa espécie de bolha energética de natureza desconhecida. Com o tempo, a exploração da Nuvem de Wermund (assim chamada em homenagem ao grande cosmonauta e astrofísico do século XXI Wermund Christiansen) por sondas microbóticas levou à descoberta que aquela nebulosa de energia “estranha” não somente servia como uma passagem hiperespacial segura para o Sistema Solar de Atna, mas também podia servir como uma poderosíssima fonte de energia. Este primeiro portal dimensional foi batizado de “Drop” pelo mesmo Wermund, porque ele percebeu que a Nuvem emanava “pingos” de hiper-energia. Após a morte de Wermund, muitas outras Nuvens foram descobertas pelas naves terrestres, e receberam nomes sugestivos como Warp, Alice, Bermudas, Pathmos e Avalon.
Deflesh começou a ranger os dentes, cada vez mais impaciente com a demora. Quando dois funcionários do hangar vieram comunicar o prazo para a decolagem, o soldado não suportou conter a raiva e descarregou nos pobres coitados. Um empurrão atirou o mais alto da dupla, de nome Mork, no chão lustroso do corredor, enquanto o seu companheiro, de nome Zingar, foi lançado contra um robô-limpante, derrubando-o com um grande estrondo metálico. O tumulto atraiu a atenção de outros tripulantes. Alguns outros soldados, já cansados da rotina, viram nisso uma oportunidade de diversão, e começaram a gritar, e incentivar a briga. Os empregados civis da nave, todos eles colonos, tentaram impedir o confronto contatando seus superiores. Sabiam que ninguém seria capaz um BOLD com raiva.
A Sargento Norge Nuyt, adentrou o hall com pressa. Ela era alta, com cabelos negros e olhos verdes claríssimos. As mulheres eram preferidas para a dita função devido à sua grande dedicação, e recebiam um treinamento rigoroso para aprender a lidar com as explosões de testosterona dos soldados. Elas preferiam ser chamadas de Viragos ou Amazonas, e não gostavam de nenhuma falha na rigorosa disciplina que imperava nas hostes militares terranas.
Assim que percebeu o que estava acontecendo, ativou o “freio sonoro” e mirou na cabeça de Deflesh. Um disparo certeiro fez com que o homem ficasse mudo. O aparelho conhecido como “freio sonoro” ou “rédea mental” dispara uma bateria de pulsos infra-sônicos que catalisam uma série de reações bioquímicas no cérebro, provocando uma paralisia quase imediata, e terminando num torpor absoluto. O coquetel de drogas que todo BOLD ingeria constantemente consistia num complexo sistema de conexões químicas que poderiam ser rapidamente ativadas ou desligadas por determinadas freqüências sonoras. Norge carregava uma minúscula plaqueta em seu antebraço, acionável quando pressionada.
Os outros soldados, que haviam se aproximado e acompanhavam empolgados a confusão, dispersaram-se rapidamente assim que viram a amazona chegando.
Norge calcou o corpo inerte de Deflesh com a bota, enquanto inteirava-se do acontecido. Com um ar de desprezo, ordenou que os soldados mais próximos ajudassem a carregá-lo até a enfermaria mais próxima.
— O vôo da Silent Locust está cancelado! — gritou ela para os controladores de tráfego interno do Cruzador.
Não era a primeira vez que Deflesh Ramos perdia o controle. Norge iria enviá-lo para um check-up completo. Desconfiava que o organismo do soldado estava começando a rejeitar os entorpecentes mentais, sofrendo algum problema de saturação.
Norge sentiu que não podia ficar esperando por ordens superiores. Seu lema de vida era sempre agir antes que os problemas ocorressem.
Prevenir, e não remediar.

TEMPO DE ESPERA
Texto: João Simões

segunda-feira, 14 de abril de 2008

8. QUASE VÉSPERA DE NATAL

Era a noite antes do Natal, e no Espaço não se via nenhum VOID malvado.
As meias foram penduradas com cuidado junto à janela,
pois Santa Klaws logo chegaria.
Eu fiquei na minha cama, sonhando com guloseimas e presentes.
Quando ouvi um barulho, corri direto para a janela, então eu pude ver.
Rápido como um raio, reluzindo com o brilho vermelho das renas, vinha o trenó de Klaws. Um rastro de neve branca e brilhante formava-se no ar.
As renas vasculhavam o céu com seus narizes disparando raios laser, à busca de possíveis inimigos, e suas galhadas tinhas pontas afiadas como diamante. Qualquer monstro de outro planeta que aparecesse, seria cortado em fatias e pulverizado.
Um barulho no teto, e eu voltei direto para minha cama.
Pela janela, Santa Klaws entrou com um salto. Seu casaco era fofo e vermelho, invulnerável. Ele balançou seus braços fortes, e eu pude ver aquelas garras afiadas, com as quais ele nos protegia dos malvados e imundos extraterrestres.
Fingi que estava dormindo, mas ele olhou para mim e deu uma piscada.
“Você foi um bom menino?” — disse ele, com sua voz trovejante.
“Se não foi...” — o medo quase congelou minha alma.
Ele soltou uma gargalhada, e após encher minhas meias com presentes, deu uma pirueta, e saltou pela janela.
Não tive coragem de abrir mais os olhos, mas continuei ouvindo o barulho das renas, e aquelas sonoras gargalhadas do Bom Velhinho Matador de Aliens.
À medida que eu caía no sono, ouvi uma música trazida pelo vento gelado:
“Um Feliz Natal para todos!”
Assim que Brasil Kosma terminou de contar a mesma história que era contada geração após geração em sua família, desligou a holotela e olhou satisfeito para seus filhos, Brasil Júnior, Kola e Tevãu, que ouviram a tudo muito interessados.
— Onde Santa Klaws mora, papai? — perguntou Kola, a filha caçula.
Brasil sentiu-se orgulho com o interessa da menina, e pôs-se a repetir mecanicamente o que costumava ouvir de seu finado pai, Tóvãu Kosma:
— Ele mora no Norte Branco, onde a neve cobre as florestas durante o ano inteiro. Lá os pinheiros brilham como árvores de natal, e os VOIDs convertidos trabalham nas fábricas de brinquedos e de doces para pagar pelos seus crimes.
Os olhos das crianças pareciam brilhar a cada palavra. Faltavam apenas dois dias para a tão esperada véspera de Natal, e a excitação das crianças ficava cada vez maior. Brasil beijou um por um, e levou-os até a cama larga de madeira onde todos dormiam juntos. Ligou os ventiladores, apagou a luz e foi sozinho para a varanda de sua humilde casa.
Brasil lançou um olhar perdido no horizonte. No céu escuro as estrelas brilhavam como jóias, e tudo indicava mais um dia seguinte sem chuva. O homem de pele morena e cabelos vermelhos era descendente dos primeiro colonos que chegaram em 2070 ao Planeta Thoth, uma das mais antigas colônias terrestres, cujo clima quente e árido era por demais hostil. No entanto naquela época distante em que os mundos disponíveis para a colonização eram bem poucos, os humanos não podiam se dar ao luxo de desprezar condições climáticas adversas. Conseguir colonos para tais planetas inóspitos era sempre difícil, mas iludidos por promessas de casa própria e colheitas abundantes, milhares de terráqueos afluíram às naves colonizadoras. Entre estes desesperados estavam os longínquos ancestrais de Brasil Kosmas.
A vida da família Kosmas era árdua, e mesmo com a toda a tecnologia de Terraformação funcionando a plena carga, os custos ainda eram altos para a população thothiana. As cidades maiores e mais antigas cresceram nas poucas regiões mais férteis das altas latitudes, onde concentraram-se os mais ricos do planeta. A grande maioria da população tinha que se contentar com condições de pobreza e miséria nos rincões mais inóspitos, onde trabalhavam na mineração e no plantio de vegetais nativos. A mineração, como em todos os planetas humanos, era feita por autômatos, mas uma série de conflitos e revoltas que estouraram no século passado levou à restauração da mão-de-obra humana, como uma forma de absorver a legião de migrantes e refugiados.
Brasil cuidava de uma pequena horta onde plantava tubérculos-prateados, inhames-thothianos e espinafre-gigante. O transporte ficava por conta de seu único camelo, Sinho, velho mais ainda robusto. Brasil tivera que gastar muito para conseguir os brinquedos de seus filhos. Não ganhar presentes durante o Natal poderia representar um trauma profundo para a mente infantil, e o agricultor sabia disso. Viúvo e pai de cinco filhos, a economia da família era complementada pelos rendimentos enviados pela filha mais velha, Lorá, mandada no anterior pelo pai para Neopolis, onde se matriculou na filial thothiana da Top Model High School, a venerada TMHS.
Há meses que Brasil não tinha mais notícias de sua querida Lorá, mas ela continuava mandando-lhe mensalmente uma modesta quantia em dinheiro. Devia vir do trabalho como modelo iniciante; com sorte — pensava o horticultor — ela seria selecionada para integrar a invejada Raça das MOD, mulheres novas e lindas cujo padrão de beleza era algo tão perfeito, que não podia ser atingido sem uma série de operações plásticas e a ação permanente de substâncias eugenomórficas. Tudo isso era muito caro, mas uma vez conseguindo seu objetivo, Lorá Kosma poderia melhorar em muito a vida de sua família. Com sorte, quem sabe até a pequena Kola poderia também ser mandada para a TMHS.
O lavrador vasculhou a mesinha da varanda à procura de um copo, e despejou todo o conteúdo de uma garrafa de águaprata, um forte aguardente feito com o sumo fermentado dos tubérculos-prateados. Não pôde deixar de perceber que as luzes na casa de seus vizinhos ainda estavam acesas. Cuspiu no chão, maldizendo a invejosa família dos Lacroix, que moravam a uns trezentos metros de distância. Ele tinha certeza que era Madlena Lacroix quem estava inventando as fofocas sobre sua filha: de que ela já havia sido expulsa da TMHS e que provavelmente acabara em algum Lupanar. Lupanar era o nome dado aos prostíbulos “ao vivo”. Numa época em que a ciberpornografia era uma das atividades mais lucrativas, a procura maior era por sexo virtual com criaturas 3D que se tornavam autênticas celebridades, as “BRAND”. A busca pela “Carne Humana”, como era chamada pejorativamente a prostituição de pessoas “reais”, era vista como uma perversão para uma minoria de degenerados e fracassados. Pagava-se pouco e as condições eram repugnantes.
Brasil Kosmas atribuía as mentiras de Madlena à inveja que sentia por sua filha Kilia ter sido derrotada por Lorá durante o concurso que a THMS organizou no ano passado. Ele sabia que sua filha nasceu para brilhar e vencer, e que estava destinada ao sucesso.
Seus filhos já deviam estar dormindo, e o pai orgulhoso voltou ao seu quarto para conferir os ganhos da noite passada com a Feira Agrícola. Ainda faltava dinheiro para comprar o presente de Tevãu, e isto estava tirando-lhe o sono. Brasil não acreditava mais em Santa Klaws, e intimamente sentia um ódio secreto pelo “Bom Velhinho Matador de Aliens”. Seu desejo era contar a verdade a seus filhos, mas sabia que não teria coragem para enfrentar a desilusão deles.
Faltavam dois dias para a véspera de Natal.

QUASE VÉSPERA DE NATAL
Texto: Simoes Lopes

sexta-feira, 11 de abril de 2008

FICHA ALIENÍGENA 2: ALDHORITAS

ALDHORITAS

DADOS ASTRONÔMICOS

Estrela

Galyssar

Tipo

G2 V (anã amarela)

Sistema

7 planetas, 79 satélites

DADOS GEONÔMICOS

Planeta

Aldhor

Tipo

TG 0,993

Atmosfera

Oxidante 2,7

Diâmetro

10 136 km

Gravidade

0,82 gravum

Ano

422 dias

Dia

20 horas

Hidrosfera

78 % água

DADOS BIONÔMICOS

Taxonomia

3125 Cynentomon xanthomma

Pés

2

Mãos

2

Dedos

2/4

Esqueleto

Exoesqueleto

Olhos

4

Bioquímica

Hidro-carbônica

Sangue

azul-cobalto


Possuem uns três metros de altura, seus corpos são cobertos por uma espécie de carapaça quitinosa azul-metálico. Quatro olhos multifacetados de cor amarela se assentam sobre um crânio parecido com o de um cão. Possuem quatro dedos nos braços, mas apenas dois nos pés. Sua carapaça dorsal é formada por nódulos arredondados.

terça-feira, 1 de abril de 2008

7. AS AMANTES DE AJAX BALTIMOR

As ondas de choque indicavam que Ajax Baltimor estava rompendo a barreira do som. O estrondo não o impediu de acelerar ainda mais, tornando o vento que fustigava seus cabelos um verdadeiro tufão. Assim que avistou o sítio onde morava, nas cercanias da Cidade Gamma III, reduziu a velocidade para garantir um pouso seguro. O sol brilhava forte, e ele acenou para as lindas mulheres que aguardavam por ele na piscina, nuas e exuberantes. Livrando-se rapidamente de suas roupas, ele flexionou suas musculosas pernas e mergulhou como um verdadeiro atleta. Melynda, uma loira de enormes seios e lábios cheios esperava por ele junto a Saskah, uma bubastisiana de cabelos azuis e pele escura. Ele puxou-as para junto de si com um único movimento, e uma delas lambendo sua tatuagem de carpas douradas no bíceps esquerdo. Suas outras amantes, Glessia, Ysha e Rind, vieram juntar-se ao grupo e...

Ajax pensou que seus tímpanos iam estourar quando o zumbido metálico do alarme reverberou dentro da sua cabeça. Fechou os olhos enquanto esperava passar a dor incômoda nos ouvidos.

Quando abriu os olhos mais uma vez, ele sabia que não podia mais ser Ajax Baltimor, mas sim 167009, um cosmotecnólogo do Setor 18 do Departamento de Fotocomputrônica Astronáutica. Não tinha mais músculos, não era capaz de voar e... o mais importante... não tinha mais um harém de amantes ninfomaníacas.

A manutenção da avançada tecnologia terráquea estava a cargo da Raça conhecida como NERD. Dedicados integralmente às tarefas que definiam suas vidas, esta classe estava tão “imersa” no mundo da Ciência e Tecnologia que não podia levar uma vida normal. Eram como abelhas operárias presas em um mundo à parte. Tudo aquilo do qual eram privados era compensado pelas fantasias vividas no universo virtual chamado NERDLAND, onde 167009 podia ser quem ele quisesse, sem limites ou censuras. O princípio dos Paraísos Ciberespaciais baseava-se em tecnologias já bem antigas, remontando à rudimentar tecnologia virtual de quase trezentos anos atrás, cuja popularidade oscilava em ciclos que alternavam altos e baixos. A partir do início do Século XXIII seu uso como uma espécie de droga escapista tornou-se mais uma vez tão disseminado que não havia mais nenhum NERD fora deles. A sua vida “física” era tão desinteressante do ponto de vista afetivo que nada podia competir com os delírios hedonistas de NERDLAND.

O cosmotecnólogo 167009 — todos os de sua categoria eram conhecidos apenas por números — desconectou-se hesitantemente de suas pontes ciberespaciais para retornar ao trabalho. Os Computadores Deltafotônicos que controlavam o sistema de holoblindagem do Cruzador Espacial Tokyo trabalhavam ininterruptamente e qualquer falha por menor que fosse deveria ser imediatamente corrigida. Um sistema complexo de controle automatizado garantia que a maior parte dos problemas fosse corrigida com rapidez, mas nos raros momentos em que não bastava, era necessária a ação rápida dos cosmotecnólogos. Assim que chegou, 167009 sondou com sua colega 187721 a configuração do sistema e puseram-se juntos a analisar o relatório de erros.

Nada grave.

Apesar do trabalho estafante, os NERD devotavam uma dedicação sacerdotal às suas tarefas cotidianas. Falar de fótons, pósitrons ou quarks era como um alimento revigorante para suas mentes hiperativas. Em poucos minutos, o sistema fototrônico estava corrigido e funcionando em carga máxima, graças aos esforços combinados dos dois companheiros. A cosmotecnóloga 187721 era a melhor amiga de 167009, e este até desconfiava que os sentimentos dela por ele ultrapassavam a simples amizade. Mas nenhuma garota NERD podia competir com as mulheres virtuais de NERDLAND, e a jovem cientista atarracada de cabelos vermelhos com certeza sabia disso, até porque ela também era uma assídua freqüentadora da Outro Mundo, como também era conhecido o Ciberespaço. Fosse qual fosse sua fantasia, ela também não deveria achar muito empolgante ter um relacionamento de verdade com 167009, um moreno magricela de andar desengonçado. Os prazeres viciantes dos Ciber-Paraísos acabaram por transformar os NERD numa casta praticamente estéril, tal o seu desinteresse pela vida “normal” na realidade física. Novos membros precisavam ser produzidos por inseminação artificial, e educados em um sistema integral que prosseguia até a sua morte. Os membros desta casta de cientistas mantinham um certo desprezo pelas outras “Raças” que compunham a Humanidade, acalentando um sentimento dissimulado de revolta muito grande, amplificado pelo tédio cada vez maior que sentiam quando não podiam estar no Outro Mundo. O que tornava impossível uma hipotética rebelião NERD era que estes sabiam — num nível quase inconsciente — que não seriam capazes de viver sem as outras castas.

A Humanidade no ano 2222 era como uma máquina de proporções galáticas. Para mantê-la funcionando era preciso manter os indivíduos divididos em Raças cada vez mais especializadas, tão diferentes entre si que já não tinham nenhum sentido de unidade. Eram como várias espécies vivendo numa simbiose extrema, que ao mesmo tempo definia suas vidas e fazia de todos prisioneiros.

Assim que o problema no campo de força da nave foi resolvido, os dois cosmotecnólogos despediram-se com poucas palavras.

Ajax Baltimor mais uma vez estaria de volta, assim como suas amantes insaciáveis.

Em NERDLAND tudo era possível.

AS AMANTES DE AJAX BALTIMOR
Texto: Simoes Lopes

sexta-feira, 28 de março de 2008

6. QUASE HUMANO

Johnson Ka acordou muito cedo naquele dia, e ficou na janela apreciando o brilho avermelhado da alvorada. Sua irmã Sarah estava no quarto ouvindo música, um disco de música antiga, provavelmente Beatles ou outro conjunto musical do século XX ou XXI, ele não sabia ao certo. Vestiu seu uniforme militar, limitou-se a dar um gole no copo de leite e saiu para trabalhar. Roubou um chiclete de hortelã da irmã mais nova e saiu pela rua mascando e pensando em sua noiva.

A pequena estrela vermelha que iluminava o Planeta Apache começava a despontar no horizonte como um rubi flamejante, e as altas árvores que formavam a imensa Floresta de Space Cuesta balançavam ao sabor do vento que trazia um forte cheiro de maresia. Um comboio de naves mercantes chegadas de alguma colônia terráquea flutuava a grande altura, com os cascos metálicos brilhando como enormes gemas cor de esmeralda. Johnson trabalhava há dois anos como vigia no Apache Trade Center, o principal conglomerado de câmaras comercias do planeta, em cujos andares subterrâneos funcionava a Bolsa de Valores de Apachepolis.

Apachepolis era a maior cidade do planeta e recebera este nome há cerca de dez anos atrás, quando o planeta foi reconhecido e aceito no Mercado Pan-Solar, deixando de usar o antigo nome de Krtmaiyruff.

Johnson ajeitou seu boné com esmero, e mais uma vez deu uma rápida conferida em sua aparência e vestimenta. Seus patrões eram muito rigorosos, e ele não queria perder este emprego, com o qual sustentava a mãe viúva e sua irmã caçula. Pegou o trem que levava até a Estação Apache Trade Center, e ligou seu minicomputador para saber das últimas notícias. Seu interesse estaca concentrado nos resultados do powerball da noite passada. O Apache Masters havia derrotado os Apache Titans por 35 a 21, e seguia líder do campeonato. Johnson vibrou com a vitória de seu time de coração, e seguiu o resto da viagem com a felicidade estampada no rosto.

Já perfilado em seu posto de vigia, Johnson Ka presenciou a chegada de uma delegação de sacerdotes-empresários. Eles passaram pela porta, fazendo as identificações retinianas de praxe, sem cumprimentar nenhum dos funcionários. Pegaram um elevador privativo, e conversavam em voz tão alta que dava pra ouvi-los até mesmo de longe. Os funcionários apachianos que acompanhavam a delegação não puderam seguir no mesmo elevador.

Os nativos do Planeta Apache — como Johnson Ka — não eram humanos. Johnson possuía quatro olhos miúdos de formato oval, e coloração cinza-aço, compostos por um conjunto de omatídeos compostos. Seu corpo era pequeno se comparado a um humano, não passando de um metro de altura, e sua pele escura era coberta por uma penugem rosada. O Planeta Apache só fora aceito no Mercado Pan-Solar após a certificação de que sua cultura tornara-se idêntica à dos humanos. Tornaram-se “Humanóides”, daí o termo NOID que qualificava os habitantes destes planetas na complexa hierarquia vigente na esfera de influência do Planeta Terra.

Assim que a Agência de Risco da Terra deu o aval para a incorporação daquele planeta, ele foi batizado com o nome de Apache, substituindo o nome original, Kyp, por um dos povos primitivos do mundo natal dos humanos. Os terráqueos sempre explicavam tal gesto em seus almanaques como um sinal de respeito pela sabedoria das antigas tribos, os quais ironicamente haviam sido exterminados por eles mesmos. Outros planetas da Esfera Humanóide tinham nomes expressivos como Maya, Maiori, Zulu, Cherokee, Seminole.

Era justamente de Seminole que acabara de chegar mais um visitante, um soldado da Raça dos BOLD chamado Reagan Mikulsun. Ele trazia o cabelo alisado por uma pasta gelatinosa, e seu uniforme deixava à mostra seus braços musculosos com tatuagens representando cadáveres não-humanos em chamas. Estava ali a contragosto, pois os militares não gostavam de sair de suas bases de operações, estrategicamente instaladas nos diversos mundos NOID. Estas bases eram conhecidas como Guardiães da Paz, pelo apoio que davam aos planetas assistidos. Os soldados só deixavam seus postos para neutralizar inimigos externos ou garantir a ordem interna nestes mundos.

Reagan quis passar direto pela porta, no que foi interpelado por Johnson, que com a máxima gentileza possível, sem olhar nos olhos do BOLD (como mandava a etiqueta), explicou que aquela entrada só podia ser usada pelos membros da delegação empresarial, e que os militares deveriam usar a entrada do lado leste.

Antes que pudesse completar a frase, um tapa derrubou-o como se fosse uma criança de colo. Furioso, o humano, sentiu-se ofendido pela intervenção do extraterrestre, e gritou uma série de palavrões antes de forçar a entrada. A porta, como seria esperado, não abriu.

— Nós passamos a vida inteira salvando estas lombrigas espaciais, e eles nos pagam assim! — gritou Mikulsun, cujo hálito denunciava um teor alcoólico bem elevado.

Johnson tentou se levantar, mas sentiu que seu ombro estava ligeiramente deslocado, e sentia uma dolorosa fissura em seu flanco esquerdo.

O militar devia saber que sua entrada não era permitida, mas os BOLD eram tão doutrinados para uma vida de constante batalha, que seus instintos violentos constantemente nublavam seus cérebros atrofiados. Além disso, a quantidade maciça de drogas estimulantes que se viam compelidos a usar tornava sua capacidade de raciocínio muito prejudicada.

A barulheira atraiu a atenção de outros funcionários. Dois policiais apachianos, autorizados a usar suas armas, sabiam que não podiam dispará-las contra um terrestre, e limitaram-se a pedir que Reagan se acalmasse.

— Senhor, pedimos que compreenda a situação. São normas de conduta ditadas pelos próprios LORD.

“LORD” era o nome como era conhecida a casta de sacerdotes que controlavam as atividades comerciais e financeiras no Mercado Pan-Solar. Para os Humanos, Religião e Comércio caminhavam de mãos dadas. A confusão persistiu, com o enfurecido BOLD tentando agora golpear o policial que ousara desafiá-lo, um apachiano cuja cabeça branca coberta de pêlos arrepiados contrastava com o tom escuro de seu corpo azul.

O tumulto só foi interrompido quando uma humana de pele escura e andar elegante saiu do prédio, seguida por um séqüito de silenciosos auxiliares nativos.

— Soldado, sua entrada não é permitida aqui — disse ela com um tom de voz macio e surpreendentemente baixo. Era a supervisora Leeza Siris, uma LORD muito temida pelos subalternos.

— Dirija-se à entrada leste. — disse ela, olhando fixamente nos olhos de Reagan, que parara de gritar. — Você foi convocado para explicar pessoalmente a operação em N’umya. A Sargento Reina Haag espera por você na sala 1492.

Por mais violento que fosse, Reagan sabia que jamais deveria questionar a autoridade de um LORD: as punições habituais por má conduta eram terríveis demais até mesmo para o mais bravo dos guerreiros.

O soldado abaixou a cabeça e andou rapidamente para o portão indicado. Nenhum pedido de desculpa foi dirigido a Johnson Ka, que continuava prostrado no chão, com a dor estampada no semblante inumano. Leeza limitou-se a ordenar que levassem-no à enfermaria, e pediu que providenciassem um substituto imediato para tal posto. Os policiais afastaram-se em seguida, reprimindo seu sentimento de ódio e repulsa pelo tratamento prepotente que recebiam. Tanto eles como Johnson, ou todos Apachianos de certo modo, sabiam que os Humanóides jamais seriam Humanos.

Para os terráqueos só existiam dois tipos de alienígenas: os amigos e os inimigos.

Aos amigos, presenteavam com a escravização do corpo e da alma.

Aos inimigos, seu único presente era o extermínio total.

Entre o Extermínio e a Escravidão, os habitantes de Kyp, o Planeta Apache, escolheram a última.

QUASE HUMANO
Texto: Simoes Lopes


terça-feira, 25 de março de 2008

5. FUMAÇA COLORIDA

Glo Khan e Thúr Vizi chegaram bem na hora marcada. A pequena nave ovóide deles pousou no imenso espaçoporto de Glumak Tai. Ao longe era possível apreciar a magnífica visão da Cordilheira Verde com o Monte Glumak, o pico mais alto do planeta Glenor.

A delegação de embaixadores glenorianos estava ansiosa pelo contato. O líder consensual do grupo, Baro K’Nadikon, adiantou-se a seus pares, e caminhou com pressa na direção do casal de gurzinianos.

— Vocês são bem vindos em Glenor, representantes de Gurzin! Nós vos saudamos com grande alegria! — entoou Baro a saudação de praxe.

Os outros embaixadores glenorianos conversaram bastante entre si antes de se aproximarem do par de visitantes alienígenas.

Glo Khan coçou as escamas douradas em sua cabeça redonda, e fez a saudação de praxe aos embaixadores de Glenor. Thúr Vizi piscou os grandes olhos esverdeados com pupilas verticais — incomodada com o ar relativamente frio de Glenor — e juntou-se a seu parceiro no cumprimento.

— A situação em nosso setor estelar está muito tensa. O Mercado Pan-Solar está realizando operações em N’umya, e acusa os Aldhoritas de conspirarem contra a paz e fomentarem rebeldia entre os n’umyanos — Glo Khan apressou-se em iniciar o diálogo, preocupado que estava com a situação.

O Embaixador Baro fumava cinco palitos de teb. Estes palitos eram muito populares em Glenor, feitos de uma mistura colorida de resinas aromáticas com a cera extraída de um pequeno invertebrado marinho. Do alto de seus cento e três anos de idade, Baro via a Política Galática como uma infindável teia de mentiras embelezadas por um jargão pomposo. Sabia que os Humanos jamais deixavam de usar a força quando lhes convinha, e que a União Planetária não conseguiria conter os impulsos beligerantes por muito tempo.

O cheiro forte e doce do teb parecia incomodar um pouco o interlocutor de Gurzin, que começou a espirrar, fazendo seus longos apêndices carnudos em forma de bigodes balançar.

— Já fomos informados que uma delegação de aldhoritas renegados foi presa ao pousar em seu planeta natal — informou Baro, com uma expressão que corretamente analisada seria percebida como melancólico. Os Gurzinianos ficaram assustados.

— Estamos aqui em nome de Gurzin declarar nosso apoio incondicional à União Planetária, e solicitar o envio de uma frota de couraçados em nosso apoio. O patrulhamento de nossas colônias está insuficiente para impedir incursões dissimuladas das espaçonaves terranas.

Baro K’Nadikon deu uma tragada tão forte que um dos palitos de teb simplesmente desmanchou-se num clarão de luz colorida. Sabia que os Gurzinianos estavam com medo da presença das belonaves do Mercado Pan-Solar em sua região galática, e tinha convicção de que seria uma questão de tempo mais esse planeta deixar a União Planetária e aderir à Esfera Neutra. A detecção dos Aldhoritas em N’umya havia provocado um verdadeiro turbilhão nos círculos diplomáticos da União. A alegação dos terráqueos era que ao participar de operações clandestinas, Aldhor estava oficialmente retirando-se da Esfera Neutra para aproximar-se da União. No jargão da poderosa Agência de Risco da Terra, os aldhoritas haviam sido rebaixados da categoria WILD, isto é, “selvagem”, dos mundos considerados neutros, para a classe odiada dos VOID, “os vazios”, devendo ser considerados como aliados dissimulados da União Planetária.

Os Humanos deslocaram dois de seus mais modernos couraçados, Peace e Freedom, para as cercanias do sistema planetário de Aldhor, e exigiram a prisão dos “dissidentes”. Sem opção melhor à vista, o governo aldhorita prontamente atendeu as exigências do Mercado Pan-Solar, e os supostos espiões estão presos e incomunicáveis. Mas os terráqueos não se deram por satisfeitos e agora pediram que lhes fossem entregues os cativos.

A União Planetária reiterou pelos canais cabíveis que não tinha nenhum vínculo com Aldhor, e que não estava em seus planos nenhuma ação de confronto. Os embaixadores glenorianos foram escolhidos para conduzir as negociações por serem os mais antigos, e acumularem uma vasta experiência no contato com os humanos. Pelas leis de Glenor, quanto mais velho, mais qualificado era um diplomata, o cargo era vitalício e sem direito a aposentadoria. Em outras palavras, os diplomatas glenorianos dedicavam-se a negociar até morrer. Baro K’Nadikon e sua falecida mãe Jud’ru K’Nadikon, estiveram entre os principais artífices do Tratado de Torka, que definiu os limites entre as esferas de influência dos Planetas Humanos e a União Planetária, garantindo um cinturão de “amortecimento” formado por planetas neutros. Para isso funcionar, a União teve que renunciar às suas posturas pacifistas seculares e reativar sua tecnologia bélica. Só assim foi possível refrear o ímpeto expansionista dos terráqueos, que planejavam esmagar até mesmo os planetas mais antigos da União. Além disso, a União nada pôde fazer para impedir que os mundos já conquistados fossem libertos: a Terra manteve suas possessões de forma integral.

As últimas ações da União haviam sido tomadas às pressas para impedir mais um conflito. A Terra alegava — como sempre — que estava apenas defendendo-se de ameaças externas, e que tinha direito a zelar pela neutralidade dos planetas assim declarados. As diversas espécies alienígenas que compunham a União, que mal passavam do cinqüenta — número irrisório considerando-se as mais de 3.000 que fizeram parte dela nos séculos anteriores à expansão da Humanidade, estavam enviando seus representantes diplomáticos para Glumak Tai, a maior cidade do planeta Glenor, para votarem numa nova deliberação coletiva. Tais assembléias eram normalmente feitas por meio de hipercomunicação, mas o medo de interceptações e espionagem tornaram necessária a volta das grandes reuniões de corpo presente. Uma vez protegidos, os embaixadores poderiam expressar suas opiniões de maneira mais direta. A maioria das delegações chegara com o mesmo pedido: reforçar o contingente militar em seus setores, algo que estava ficando cada vez mais difícil para as sobrecarregadas frotas da União.

À medida que escoltava a delegação gurziniana para os monotrilhos da estação de transporte, Baro olhava para os círculos de fumaça que dançavam ao redor de sua cabeça, formando anéis, ora vermelhos, ora azuis, até acabarem finalmente dispersados pelas rajadas possantes do Vento Oeste que zunia pelo espaçoporto. Assim ele percebia as ações da União: meras nuvens passageiras de fumaça a rodopiar e dançar, funcionando como distração por breves instantes, mas incapazes de resistir à fúria da ventania.

Os ventos sopravam cada vez com mais força.

Ventos que vinham do Planeta Terra.


FUMAÇA COLORIDA
Texto: Simoes Lopes

domingo, 2 de março de 2008

FICHA ALIENÍGENA 1: N'UMYANOS

N’UMYANOS

DADOS ASTRONÔMICOS

Estrela

Tavvar

Tipo

F8 V (anã amarelada)

Sistema

13 planetas, 143 satélites

DADOS GEONÔMICOS

Planeta

N’umya

Tipo
TG 1,014
Atmosfera
Oxidante 1,2

Diâmetro

14 003 km

Gravidade

1,1 gravum

Ano

529 dias

Dia

28 horas

Hidrosfera

62 % água

DADOS BIONÔMICOS

Taxonomia

3156 Crinichelonoides hexadactylus

Pés

2

Mãos

2

Dedos

6

Esqueleto

Endoesqueleto

Olhos

2

Bioquímica

Hidro-carbônica

Sangue

vermelho-níquel


Os n’umyan são baixos e atarracados, de estrutura humanóide. A pele é grossa, com aspecto de couro, e possuem bicos córneo semelhante aos das tartarugas. Seus olhos são alongados, e as pupilas são vermelhas luminescentes. As mãos e os pés possuem seis dedos. Uma crina lanosa se estende ao longo da cabeça até o dorso, de cor esbranquiçada ou acinzentada. Os machos são maiores que as fêmeas.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

4. DANDO NOME ÀS CRIATURAS


O animal enorme dormia profundamente devido aos sedativos aplicados. Murgo Krishna Peregrinus já estava com os resultados da varredura genética quase terminados, e esperava apenas que sua irmã Hara carregasse o computador com os dados da tomografia holográfica. Murgo conferiu mais uma vez a análise genômica da criatura, e sentiu-se preparado para iniciar o relatório para Mork Peregrinus, pai de ambos.

“Ursus crustaceus!”, Hara gritou para ele, com tanta ênfase que parecia estar soletrando.

— O que houve? — disse Murgo, coçando a barba já grisalha.

Ursus crustaceus — a cientista de cabelos tingidos de azul repetiu as palavras em latim com uma ponta de orgulho —, é como vamos batizar o bicho...

— “Ursus”, como os ursos da Terra? Não prefere criar um novo nome para o gênero? Seria melhor...

— O Código Galático de Taxionomia Exobiológica permite que nomes genéricos de seres vivos da Terra sejam dados a espécies alienígenas. Com o prefixo numérico, ele será chamado de 112 Ursus para distinguir do...

— Hara, eu conheço muito bem o Código. Eu fui seu professor, não é, maninha? — Murgo jamais se adaptara à tagarelice de sua irmã mais nova, desde que ela passou a fazer parte das viagens de pesquisa na Rhinoceros Unicornis, a nave que o Clã Peregrinus utilizava em suas expedições exobiológicas.

Os Peregrinus não eram um dos principais clãs de cientistas que compunham a Raça POD. “Pod”, um nome cujo significado primitivo era “legume”, já fora no passado um termo pejorativo usado principalmente pelas classes militares da Terra para referir-se aos cientistas que se dedicavam à catalogação das infindáveis formas de vida que pululavam pelos cantos da Via Láctea. Mas o uso contínuo do termo acabou caindo no uso comum, até mesmo pelos próprios exobiólogos. Estes dividiam-se em clãs que dividiam a tarefa de dar nomes às variadas criaturas extraterrestres. Mork Peregrinus, o já idoso pai do núcleo familiar composto por mais umas dezesseis pessoas, trouxera um grupo seleto de filhos e netos até o pequeno planeta gelado de Peregrinus 112, o décimo planeta a orbitar a estrela branca NK-13-137-56. Como podemos notar pelo nome dado ao planeta, os POD não dedicavam-se apenas à mera Exobiologia, sendo naturalistas com um alcance muito amplo: o clã de Mork incluía não somente exobiólogos, mais também químicos, planetólogos, astrônomos e planetógrafos.

Murgo, seu filho mais velho, era pai de outros dois componentes da equipe, Kamacron Salam, com 17 anos, e Linneus, com 16. Linneus, apesar da pouca idade, possuía uma cultura astronômica tão vasta, que já com treze anos de idade descobriu com sucesso pelo menos três grandes planetas terróides com biosferas extremamente interessantes.

Kamacron estava em missão de coleta de dados no planeta Aldhor, um planeta neutro que aceitara a presença da equipes científicas terranas para catalogar as suas formas de vida. Já fazia mais de um ano que Murgo não via o filho mais velho.

Hara parecia resoluta em dar nome à nova espécie analisada, enquanto seu irmão não parecia muito contente. Os exobiólogos terranos eram assim mesmo: viviam tão concentrados em sua pesquisa, que pareciam não dar muita importância a mais nada. Qualquer minúcia podia virar motivo para uma discussão.

— Olhe para ele! Apesar da cabeça se assemelhar mais à de um camarão, o corpo é muito parecido ao de um urso! — insistia a mulher, sem querer ceder um milímetro.

— Aquela espécie que eu cataloguei na Península A22 era muito parecida. Eu chamei de Caridarctus ruber, lembra? Acho que devemos incluí-la no mesmo gênero... — retrucou o irmão.

— Você acha que eu não conferi isso? — O seqüenciamento genômico mostrou que não são tão próximos assim...

— Temos que revisar isso — protestou Murgo, já subindo o tom de voz.

— Você nunca confia nas minhas idéias! Eu não sou tão burra quanto você acha! — Hara ficou tão irritada que Murgo sentiu que ia levar um tapa.

Um barulho ensurdecedor interrompeu o debate acalorado entre os irmãos. Uma pequena nave surgiu no céu esverdeado do mundo gelado, iluminando os picos cobertos de neve da Cordilheira A1 com um brilho dourado. Murgo e Hara esqueceram a polêmica científica por um breve momento e correram de volta para a base montada no sopé das montanhas.

Um ancião velho e esquálido, com uma comprida barba branca, trajando um macacão fino de tecido sintético estava sentado na poltrona maleável que ficava bem no meio da sala de comando. Mork Peregrinus, 71 anos, um homem famoso pela descoberta de mais de quarenta diferentes mundos habitados, estava com os olhos fixos na tela de segurança. Peregrinus 112 era um planeta sem formas de vida inteligentes, e nenhum tipo de civilização extinta. A presença de uma nave só podia indicar algo vindo “de fora”, e as naves dos clãs POD não estavam equipadas com armamento pesado. Murgo, medroso por natureza, já adentrara a sala ansioso por enviar um pedido de ajuda à nave militar mais próxima. Tilana, sua mãe, uma senhora gorda de sorriso largo e voz suave, a principal geneticista do grupo, tranqüilizou o filho, dizendo que a espaçonave já havia se identificado.

Quando entendeu direito o que estava acontecendo, Murgo soltou uma gargalhada.

Aquela nave possuía um único tripulante.

Era Kamacron, seu filho primogênito. Ele estava de volta.

Murgo apressou-se em avisar sua esposa Dharmi da boa nova.

— Dharmi, ele está de volta! — gritou o homem, ansioso pelo pouso da nave.

Até mesmo os membros do clã que estavam fazendo uma busca submarina num lago próximo voltaram à base para recepcionar o parente.

O clima era de tanta euforia que ninguém percebeu o tom de melancolia do jovem quando este apareceu na pista de pouso.

— Kamacron, meu querido, que bom! — gritou sua mãe, que chegava acompanhada das duas irmãs.

O rapaz não abriu a boca, limitando-se a caminhar lentamente na direção da base. Uma nevasca súbita caía sobre os cientistas. Não fossem seus equipamentos de sobrevivência, estariam congelados.

O avô foi o primeiro a notar que algo de errado havia acontecido. Ele acompanhou o neto de perto, sem dizer nada, esperando o momento certo para inquiri-lo.

— O que aconteceu, Kamacron? — perguntou Mork, com muito cuidado.

— Aldhor não está mais na Esfera Neutra, vô. Os BOLD mandaram evacuar as missões de intercâmbio. Os cientistas foram retirados à pressa.

— Mas, por quê? Era um planeta pacífico...

— Houve um incidente diplomático em N’umya. Parece que existem dissidentes aldhoritas indiciados por terrorismo anti-humano. O status de neutralidade foi temporariamente suspenso.

— É uma pena... a primeira tese do seu pai sobre os carnívoros queratinosos de Aldhor. Animais fascinantes!

Devido à rígida hierarquia dos humanos no século XXII (o termo correto seria “casta”, mas uso de tal termo era algo proibido, preferiam chamá-las de “Raças”, fazendo com que cada uma cultivasse seu próprio “orgulho racial”), os cientistas POD não se tinham a menor preocupação com as turbulências políticas e sociais do seu tempo. Sua única preocupação era estudar e catalogar. Até mesmo suas emoções eram um pouco embotadas. A Política era deixada para outras castas, assim como a Guerra, tão freqüente numa era onde uso da força tornava-se volta e meia necessário. Se Aldhor não conseguisse punir os “anti-humanos” de forma convincente, poderiam até sofrer uma invasão que restaurasse a “paz”.

Homens de ciência eram uma casta de frios e estudiosos catalogadores, e eram educados desde a mais tenra idade a não pensarem em mais nada. Mork Peregrinus pensava desta forma, assim como todos os componentes do seu clã.

Mas ele não sabia que seu neto estava prestes a cometer uma verdadeira blasfêmia contra seu próprio povo.

Pensamento crítico.

Kamacron presenciara coisas que fizeram ele duvidar da magnanimidade e benevolência da Humanidade.

Seus sentimentos estavam fortemente abalados. Ele sabia que estava sendo possuído por pensamentos odiosamente blasfemos, e jamais ousaria confessá-los ao seu clã.

Kamacron abraçou sua mãe e tias, e limitou-se a reclamar do cansaço. Uma boa noite de sono iria fazê-lo esquecer das idéias malignas.

Amanhã, ele escolheria algumas espécies desconhecidas para estudar e batizar com nomes latinos. Nada como um dia repleto de trabalho para expurgar os maus pensamentos.

Mas, por mais que ele resistisse, o germe da dúvida já havia contaminado a mente de Kamacron Peregrinus.

E a contaminação iria se alastrar...

DANDO NOME ÀS CRIATURAS
Texto: Simoes Lopes


terça-feira, 8 de janeiro de 2008

3. O FIM DA TRANQÜILIDADE

A pequena espaçonave aldhorita acabara de ultrapassar a órbita de gigantesco planeta gasoso que era o mais exterior daquele sistema estelar. A tentativa de contatar os n’umyanos foram um completo desastre. Os habitantes de N’umya, o quinto mundo a orbitar a estrela vermelha Tavvar, haviam tentado sair da esfera de influência dos humanos, e sofreram com isso “violentas sanções”, o que no jargão terráqueo significava tornar-se alvo de fulminantes ataques retaliatórios.

Jep-Fil caminhava agitado pelo corredor principal da nave onde acabara era oficial de posto mais alto após a morte do Comandante Hat-Kon na superfície do planeta N’umya. Aldhor, seu planeta natal, fora membro da União Planetária, uma coligação que no passado incluía centenas de espécies dos mais remotos cantos da Via Láctea. Mas com a crescente expansão dos humanos e de sua invencível máquina de guerra, muitos planetas foram incapazes de manter-se neutros em relação aos odiados e belicosos seres do Planeta Terra.

A opção por integrar a Esfera Neutra pareceu mais sensata ao Conselho de Representação que governava o belo planeta Aldhor. Não foram poucos os conselheiros que votaram em prol de uma aliança com os terráqueos, mas a maioria demonstrou seu desprezo por eles optando por uma solução intermediária, tornando-se aberto tanto às delegações da União Planetária, como ao Mercado Pan-Solar, o nome pomposo com que os humanos autodenominavam seus domínios intergaláticos.

Hat-Kon não imaginava que os demônios terrestres continuassem agindo no sistema de Zynä após os ataques a N’umya, mas sua falha de avaliação custara-lhe a própria vida, e Jep-Fil viu-se obrigado a assumir o comando na nave Kirittaim Tuy, um veículo relativamente leve, usado para explorações científicas, que o próprio Hat-Kon e seu clã equiparam com armamentos improvisados para enfrentar imprevistos. Entretanto, as belonaves terrenas que foram avistadas ao redor de N’umya, mesmo sendo pequenos modelos da classe Insect, possuíam um poder de fogo grande demais para os aldhoritas.

E assim, a ação mais sensata deles foi simplesmente fugir, deixando rapidamente as órbitas planetárias mais internas da estrela vermelha e preparando-se para o salto hiperespacial. Jep-Fil também estava preocupado em quais seriam as repercussões da presença dos aldhoritas em N’umya, pois embora seu planeta oficialmente fosse neutro, existiam muitos de sua raça que desejavam retornar à União Planetária. E dentre os descontentes, um grupo muito influente era o Clã Medicinal dos Hat.

Os Terráqueos exigiriam uma punição exemplar aos aldhoritas rebeldes, e nem mesmo o renome dos Hat seria capaz de conter a fúria dos humanos. O barulho grave que retumbava pelas câmaras da Krittaim Tuy indicava que o hiperpulsor já estava acionando o salto além da velocidade da luz.

A recém-tornado comandante teria muito tempo para pensar em seu futuro enquanto se mantivesse no hiperespaço.

Quando retornasse ao espaço normal, contudo, a tranqüilidade iria embora.

O FIM DA TRANQÜILIDADE
Texto: Simoes Lopes
 
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