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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

4. DANDO NOME ÀS CRIATURAS


O animal enorme dormia profundamente devido aos sedativos aplicados. Murgo Krishna Peregrinus já estava com os resultados da varredura genética quase terminados, e esperava apenas que sua irmã Hara carregasse o computador com os dados da tomografia holográfica. Murgo conferiu mais uma vez a análise genômica da criatura, e sentiu-se preparado para iniciar o relatório para Mork Peregrinus, pai de ambos.

“Ursus crustaceus!”, Hara gritou para ele, com tanta ênfase que parecia estar soletrando.

— O que houve? — disse Murgo, coçando a barba já grisalha.

Ursus crustaceus — a cientista de cabelos tingidos de azul repetiu as palavras em latim com uma ponta de orgulho —, é como vamos batizar o bicho...

— “Ursus”, como os ursos da Terra? Não prefere criar um novo nome para o gênero? Seria melhor...

— O Código Galático de Taxionomia Exobiológica permite que nomes genéricos de seres vivos da Terra sejam dados a espécies alienígenas. Com o prefixo numérico, ele será chamado de 112 Ursus para distinguir do...

— Hara, eu conheço muito bem o Código. Eu fui seu professor, não é, maninha? — Murgo jamais se adaptara à tagarelice de sua irmã mais nova, desde que ela passou a fazer parte das viagens de pesquisa na Rhinoceros Unicornis, a nave que o Clã Peregrinus utilizava em suas expedições exobiológicas.

Os Peregrinus não eram um dos principais clãs de cientistas que compunham a Raça POD. “Pod”, um nome cujo significado primitivo era “legume”, já fora no passado um termo pejorativo usado principalmente pelas classes militares da Terra para referir-se aos cientistas que se dedicavam à catalogação das infindáveis formas de vida que pululavam pelos cantos da Via Láctea. Mas o uso contínuo do termo acabou caindo no uso comum, até mesmo pelos próprios exobiólogos. Estes dividiam-se em clãs que dividiam a tarefa de dar nomes às variadas criaturas extraterrestres. Mork Peregrinus, o já idoso pai do núcleo familiar composto por mais umas dezesseis pessoas, trouxera um grupo seleto de filhos e netos até o pequeno planeta gelado de Peregrinus 112, o décimo planeta a orbitar a estrela branca NK-13-137-56. Como podemos notar pelo nome dado ao planeta, os POD não dedicavam-se apenas à mera Exobiologia, sendo naturalistas com um alcance muito amplo: o clã de Mork incluía não somente exobiólogos, mais também químicos, planetólogos, astrônomos e planetógrafos.

Murgo, seu filho mais velho, era pai de outros dois componentes da equipe, Kamacron Salam, com 17 anos, e Linneus, com 16. Linneus, apesar da pouca idade, possuía uma cultura astronômica tão vasta, que já com treze anos de idade descobriu com sucesso pelo menos três grandes planetas terróides com biosferas extremamente interessantes.

Kamacron estava em missão de coleta de dados no planeta Aldhor, um planeta neutro que aceitara a presença da equipes científicas terranas para catalogar as suas formas de vida. Já fazia mais de um ano que Murgo não via o filho mais velho.

Hara parecia resoluta em dar nome à nova espécie analisada, enquanto seu irmão não parecia muito contente. Os exobiólogos terranos eram assim mesmo: viviam tão concentrados em sua pesquisa, que pareciam não dar muita importância a mais nada. Qualquer minúcia podia virar motivo para uma discussão.

— Olhe para ele! Apesar da cabeça se assemelhar mais à de um camarão, o corpo é muito parecido ao de um urso! — insistia a mulher, sem querer ceder um milímetro.

— Aquela espécie que eu cataloguei na Península A22 era muito parecida. Eu chamei de Caridarctus ruber, lembra? Acho que devemos incluí-la no mesmo gênero... — retrucou o irmão.

— Você acha que eu não conferi isso? — O seqüenciamento genômico mostrou que não são tão próximos assim...

— Temos que revisar isso — protestou Murgo, já subindo o tom de voz.

— Você nunca confia nas minhas idéias! Eu não sou tão burra quanto você acha! — Hara ficou tão irritada que Murgo sentiu que ia levar um tapa.

Um barulho ensurdecedor interrompeu o debate acalorado entre os irmãos. Uma pequena nave surgiu no céu esverdeado do mundo gelado, iluminando os picos cobertos de neve da Cordilheira A1 com um brilho dourado. Murgo e Hara esqueceram a polêmica científica por um breve momento e correram de volta para a base montada no sopé das montanhas.

Um ancião velho e esquálido, com uma comprida barba branca, trajando um macacão fino de tecido sintético estava sentado na poltrona maleável que ficava bem no meio da sala de comando. Mork Peregrinus, 71 anos, um homem famoso pela descoberta de mais de quarenta diferentes mundos habitados, estava com os olhos fixos na tela de segurança. Peregrinus 112 era um planeta sem formas de vida inteligentes, e nenhum tipo de civilização extinta. A presença de uma nave só podia indicar algo vindo “de fora”, e as naves dos clãs POD não estavam equipadas com armamento pesado. Murgo, medroso por natureza, já adentrara a sala ansioso por enviar um pedido de ajuda à nave militar mais próxima. Tilana, sua mãe, uma senhora gorda de sorriso largo e voz suave, a principal geneticista do grupo, tranqüilizou o filho, dizendo que a espaçonave já havia se identificado.

Quando entendeu direito o que estava acontecendo, Murgo soltou uma gargalhada.

Aquela nave possuía um único tripulante.

Era Kamacron, seu filho primogênito. Ele estava de volta.

Murgo apressou-se em avisar sua esposa Dharmi da boa nova.

— Dharmi, ele está de volta! — gritou o homem, ansioso pelo pouso da nave.

Até mesmo os membros do clã que estavam fazendo uma busca submarina num lago próximo voltaram à base para recepcionar o parente.

O clima era de tanta euforia que ninguém percebeu o tom de melancolia do jovem quando este apareceu na pista de pouso.

— Kamacron, meu querido, que bom! — gritou sua mãe, que chegava acompanhada das duas irmãs.

O rapaz não abriu a boca, limitando-se a caminhar lentamente na direção da base. Uma nevasca súbita caía sobre os cientistas. Não fossem seus equipamentos de sobrevivência, estariam congelados.

O avô foi o primeiro a notar que algo de errado havia acontecido. Ele acompanhou o neto de perto, sem dizer nada, esperando o momento certo para inquiri-lo.

— O que aconteceu, Kamacron? — perguntou Mork, com muito cuidado.

— Aldhor não está mais na Esfera Neutra, vô. Os BOLD mandaram evacuar as missões de intercâmbio. Os cientistas foram retirados à pressa.

— Mas, por quê? Era um planeta pacífico...

— Houve um incidente diplomático em N’umya. Parece que existem dissidentes aldhoritas indiciados por terrorismo anti-humano. O status de neutralidade foi temporariamente suspenso.

— É uma pena... a primeira tese do seu pai sobre os carnívoros queratinosos de Aldhor. Animais fascinantes!

Devido à rígida hierarquia dos humanos no século XXII (o termo correto seria “casta”, mas uso de tal termo era algo proibido, preferiam chamá-las de “Raças”, fazendo com que cada uma cultivasse seu próprio “orgulho racial”), os cientistas POD não se tinham a menor preocupação com as turbulências políticas e sociais do seu tempo. Sua única preocupação era estudar e catalogar. Até mesmo suas emoções eram um pouco embotadas. A Política era deixada para outras castas, assim como a Guerra, tão freqüente numa era onde uso da força tornava-se volta e meia necessário. Se Aldhor não conseguisse punir os “anti-humanos” de forma convincente, poderiam até sofrer uma invasão que restaurasse a “paz”.

Homens de ciência eram uma casta de frios e estudiosos catalogadores, e eram educados desde a mais tenra idade a não pensarem em mais nada. Mork Peregrinus pensava desta forma, assim como todos os componentes do seu clã.

Mas ele não sabia que seu neto estava prestes a cometer uma verdadeira blasfêmia contra seu próprio povo.

Pensamento crítico.

Kamacron presenciara coisas que fizeram ele duvidar da magnanimidade e benevolência da Humanidade.

Seus sentimentos estavam fortemente abalados. Ele sabia que estava sendo possuído por pensamentos odiosamente blasfemos, e jamais ousaria confessá-los ao seu clã.

Kamacron abraçou sua mãe e tias, e limitou-se a reclamar do cansaço. Uma boa noite de sono iria fazê-lo esquecer das idéias malignas.

Amanhã, ele escolheria algumas espécies desconhecidas para estudar e batizar com nomes latinos. Nada como um dia repleto de trabalho para expurgar os maus pensamentos.

Mas, por mais que ele resistisse, o germe da dúvida já havia contaminado a mente de Kamacron Peregrinus.

E a contaminação iria se alastrar...

DANDO NOME ÀS CRIATURAS
Texto: Simoes Lopes


 
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